UM TRUNFO REAL NO JOGO DAS “CASAS PORTUGUESAS”
(A TROUFA REAL)
Se a arquitectura for a arte e a ciência pragmáticas de tornar os espaços agradáveis à vida, ao convívio e à vista, associando-se a todas as outras artes – pintura, escultura, cinema, literatura, música, teatro, ópera, etc. -, o desenho de arquitectura poderá ser a arte de arquitectar o sonho de habitar o belo por dentro. Jogo de palavras? Não, porque o traço e a cor do desenho de arquitectura não são um mero jogo de hipóteses, mas a realização, no papel, do risco que o arquitecto assume no papel de artista sonhador. O risco que permanece, como resguardado testemunho, ou desaparece, como rasgada desmemória, é sempre um risco (em) que o arquitecto (dis)corre, por se arriscar ao (des)aparecimento do saber, do sabor que antecede a construção dos modernos templos de Tebas, pitagóricos e iluministas, que iluminam o número perfeito, escondido nas trevas da alienação e soterrado nos escombros ao alto dos tijolos sem pedra (filosofal).
Em Troufa Real, como em relação a outros, projectar é desenhar e pintar para imaginar o porvir (do que poderá vir a ser, fazendo-se), alquimia da luz, não para reiterar pleonasticamente o presente ou retirá-lo do real, refazendo-o em Outro, em ouro, afinal o Mesmo. Em geral, nele, o desenho autonomiza-se perante a encomenda, sem que possamos esquecer que diz respeito a (que respeita) um acordo, ou seja, a um pré-requisito. Mas podemos e devemos esquecê-lo, pelo menos por momentos, se tanto mais quisermos apreciar a graça sem preocupação de eficácia (no terreno), desenhada com traços, cores, volumetrias e imaginações que decorrem da nossa leitura. E que importa a encomenda, se, por último, o poema livre é sempre uma encomenda social, quer dizer, depende da língua e do discurso da época e das gentes? Assim também o desenho, de arquitectura ou arquitectado sem recomendações, é o desenho do desenhador-produtor e produto cultural do contexto.
Podemos, então, imaginar, por exemplo, que a “caixinha de segredos” (as surpresas de pequenas torres, capelas, templos, ícones escultóricos) e a rua-parede, com torre-agulha para o céu, cujo ponto de fuga é o turbilhão escuro ao fundo, a sépia ou algo assim, são parte de um planeamento ou, antes pelo contrário, o desenho de um plano parcial de uma mente que não planeia o desenlace, mas entretece as malhas de um império de sonho e imaginação, em que cabem os planos prosaicos e provisórios de todos os (en)comendadores de, como agora se diz, conteúdos. Desse modo, e para passar a outro exemplo, o crédito predial português (note-se: crédito predial, português, em Azeitão!) não é senão o desenho de um imaginário mini-Taj Mahal português, melhor ainda, mini-forte no deserto além-tejano, bebendo da fonte digna de crédito à reedificação pós-muçulmana do Gharb-al-Andaluz de Azeitão. Subversivo? Talvez, se virmos que o revivalismo de Troufa Real não é pós-moderno, porque procura recuperar para o portugal agora pequenino os traços da identidade retalhada e escamoteada (sem busca saudosista e retrógrada) por sucessivas vagas de cultura dominada por expressões alienígenas desajustadas ao real específico (veja-se, por exemplo, as amoreirinhas ou, então, as imigradas maisons). O revivalismo do, por ele chamado (ou apenas rabiscado?), “romance romântico (…) pré-pombalino” (apontamento num desenho sobre o Alto do Dafundo) mais não é do que (muito bom é) reviver no presente, para presentear o futuro, a herança aceitável e progressiva dos habitats, habitáculos e habitus sociais (cf. Pierre Bourdieu) dos portugueses de antanho, caldeados por celtas, visigodos, romanos, negro-africanos, moçárabes, judeus, cristãos e outros. Esse “romance romântico”, moderno de tão pré-moderno, para isso recuperado também na guarita da Torre de Belém, como se ela guardasse o alçado da mesquita, da torre de (ho)menagem, da abóbada sistina (ou, então, cismática ou cismontana), do torreão defensivo, e assim, todos os módulos da inspiração matricial (mas qual?), impondo suavemente, a traço achinesado – aqui e ali -, as fontes luminosas, os mirantes do além, os logradouros do mundo, os jardins perfumados, as arcadas esquivas, as torres da altivez, os pátios do intimismo, os alpendres do conclave, os terraços ávidos, na ordem de uma derivação para a “casa portuguesa”, avistada nos baptistérios das Casas do Pascoal e da Aroeira ou no acastelamento da Quinta dos Montados.
Como se de uma esclerose múltipla se tratasse, é difícil ser português inteiro de parte nenhuma, perdido o tino do império desfeito, mas não o fio de prumo de um novo rumo para a cultura portuguesa, que perdura no subtexto de outras, renovadas culturas (Áfricas, Américas, Ásias, Europas, mapa mundi), de um novo império do interior e exterior sensível, do sexto sentido, hexagonal, superior ao Quinto de Vieira e, mais do que isso, de Pessoa, que, na Mensagem, queria um império somente espiritual, compreensível para o conhecimento da época, mas insuficiente nesta época paradoxal do vazio em plena fartura comunicacional. Mas, quando vemos, lemos e sentimos as formas, as cores e os volumes da Sociedade Portuguesa arquitectada para suprir a Esclerose Múltipla, podemos conceber o império hexagonal como a ultrapassagem de todos os mitos, por ser o império dos sentidos, epicurista, sensual, comunicativo, de media frios e quentes, de erotismo da cor e do traço, das formas e dos volumes, mas também de equilíbrio zen e estóico das fontes e farturas da arte e da ciência, ersatz (substituição) e salam (paz) do reencontro com o Uno que é Múltiplo.
Procura o arquitecto o equilíbrio místico ou transcendente, quando os materiais que se lhe oferecem são matéria prosaica, como a pedra, o barro, a cal, o cimento, o metal, o plástico? Procura o arquitecto o yin e o yang (sim e não, masculino e feminino, forte e fraco) de uma saúde mental para os viventes de habitáculos, nesta sociedade sem espaço espiritual, entalada entre os taipais das obras eternas e a espiral sombria de sofrimento que a conduz ao fundo do poço (não o das águas límpidas das azenhas e repuxos moçárabes)? Se procura, é no pneuma (sopro vital) que encontrará as cordas tangentes à liberdade da arquitectura musical, habitada por dentro do labirinto de ser e estar (ver como “Coimbra é uma canção…”, não uma lição, pois não se ensina; aprende-se apenas). Assim sendo, esta poiética (fazer) de esquissar “Casas portuguesas” visitando Coimbra, homenageando os shankaras (mestres) Raul Lino e Cassiano Branco, abrindo-se ao futuro como livros e guitarras, de Alegre poema e música de Portugal – poesia e música, sinédoques de um país maior do que isto ou aquilo -, símbolos de fitas e desditas de uma passagem para a maioridade por que se anseia, a maior idade dourada que tarda, neste abrir de lótus secular, milenar e místico, por traços largos e redondos: em que nos revemos saciados de volúpia e dor, escrita escrevendo-nos laicos, mortais, mas imorredouros nas formas que permanecem habitadas por espíritos de traves-mestras.
Bem-vindo com o jogo da lição que treina todos os sentidos: falo do tacto, a cor do ouvido sem fala, pauta desflorada do livro da vida!
Pires Laranjeira
Professor da Universidade de Coimbra. Literaturas Africanas
In Catálogo da Exposição Casas Portuguesas – Desenhos e Arquitecturas, de Troufa Real. Fundação Bissaya Barreto, Coimbra, Junho/Julho 2001