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Jan 06

Troufa Real 50 anos de riscos – O Sonho de uma vida

Para além do seu nascimento em Angola, que poderia ser apenas acidental, Troufa Real é bem o resultado de uma misceginação luso-angolana que procura em todas as suas raízes a razão da sua obra e da sua identidade cultural, mas onde, devido à exuberância própria dos trópicos, estes marcam indelevelmente os traços da sua criatividade, embora adaptados a um outro racionalismo que acaba por impor alguma contenção e emprestar o rigor requerido nas paragens europeias.
«Quando da implantação da República em Portugal, o meu avô, da parte da minha mãe, o Deodoro Faria, que era de Chaves, estava ligado a todo esse processo – foi aliás integrante do grupo que viria a ser conhecido como os Defensores de Chaves – e, como as coisas no início foram o que se sabe, isto é, com muitas lutas e escaramuças, o pai dele, que tinha uma companhia de navegação, disse-lhe que o melhor era ir dar uma volta até África, que, passados uns tempos, poderia regressar, pois já estaria tudo arrumado.
Acontece que, quando o meu avô chegou ao Lobito, Angola, encontrou amigos, fez outros novos e acabou por fascinar-se por aquelas terras. Levaram-no um dia até ao Balombo, onde há águas quentes e, obviamente, que, logo ao primeiro olhar, disse:
– Mas isto é Chaves!
É um fenómeno de toda a emigração, que encontra sempre locais parecidos aos do seu imaginário natal e acaba por se agarrar a eles como se da sua verdadeira terra se tratasse. Foi o suficiente para ficar por lá, tendo vindo a apaixonar-se por uma senhora negra, da conhecida família Carmelino, do Cuma, com quem teve uma filha que nasceu branca, a mãe Elvira.
Na linha da velha tradição, como era branca, esta foi retirada à mãe e mandada para Chaves para ser educada, nunca chegando a conhecer a mãe. Ao fim e ao cabo, era a história da célebre canção que a Amália Rodrigues cantava, com letra dum conhecido poeta moçambicano, intitulada “Mãe Preta”, que a censura salazarista proibiu. Era a história das mães negras com filhos brancos, os quais normalmente eram retirados às mães, como foi o caso dela. A minha mãe nunca conseguiu ouvir esta canção sem lhe virem as lágrimas aos olhos.
Quando chegou a uma determinada idade, continuando em Chaves, onde tinha sido educada por uma tia, mas a quem também ajudava a criar os filhos, a que viria a ser minha mãe apaixonou-se por um moço da família Troufa Real, que vivia na muralha do castelo, na Rua do Poço. Namoraram, como era hábito na época, e acabaram por acertar casamento. Foi o momento em que a minha mãe aproveitou para tentar regressar a Angola. Assim, o meu pai alistou-se como voluntário e foi colocado em Luanda, tendo a minha mãe casado por procuração e ido ter com ele à capital angolana. Depois, como o meu pai tinha um curso técnico de electricidade, ficou a trabalhar na Câmara Municipal de Luanda e por lá se manteve. Venho a nascer em Luanda em 18 de Março de 1941, José Deodoro Faria de Troufa Real, de meu nome completo.
Tinha 7 ou 8 anos quando fiz a minha primeira viagem de avião para conhecer o meu avô Deodoro Faria, que continuava no Balombo. Nunca me esqueço dessa viagem, que foi a minha primeira aventura. Em 1947, Angola ainda era um pouco selvagem, cheia de belezas naturais, o que agora, felizmente, continua a ter. Foi uma viagem de descoberta e encantamento.
Fui baptizado na Igreja do Carmo, frequentei o Colégio D. Maria II, nas Ingombotas, e fiz exame na Escola Primária nº 7, em frente à Câmara. A minha infância decorreu sem percalços no bairro das Ingombotas, muito típico da Luanda daquele tempo, em que a capital angolana era uma aldeia grande, à volta do posto da Administração, da Escola, da Câmara Municipal. Os meus pais tinham relações cordiais com os Correias Mendes, os Vieira Dias, os Morais, os Belos, com cujos filhos eu convivia sem complexos, assim como com os velhos funcionários da Câmara, de todas as categorias, a quem sempre soube respeitar. Nesse tempo não havia problemas de raças, Luanda era mesmo uma cidade crioula. Aliás, as figuras de que me mais me lembro são de negros, como o velho Demóstenes, insigne figura de desportista, o velho enfermeiro Boavida, que me salvou a vida, e com cujos filhos brinquei, o Américo, conhecido médico que morreria na Frente Leste, em 1973, numa emboscada que o exército português fez ao MPLA, e o Diógenes, que viria a ser o primeiro ministro da Justiça de Angola, além dos Van-Dúnem e dos Mingas. E, está claro, é preciso não esquecer as pessoas que iam chegando de Portugal.
Fiz o 1º ano no Liceu Salvador Correia e, em 1952, vim fazer o 2º ano no Liceu Gil Vicente, em Lisboa. No 3º ano fui expulso deste estabelecimento escolar por causa da Mocidade Portuguesa, e acabo por ir para a Escola Portugália, que era barata, e para onde ia muita gente de Angola. No 5º ano, o Américo Boavida, que tinha sido meu vizinho em Luanda, como referi, e que andava mais adiantado, pois era mais velho, foi meu explicador.
Eu vivia nesse tempo no Bairro das Colónias, no número18 da rua Zaire. Foi aí que vi, pela primeira vez, o Igrejas Caeiro, que ali tinha uma paixão, a Elvira Velez, já locutora radiofónica, e que viria a ser a sua mulher. Pelas suas características, a Escola Portugália conseguia reunir muita gente do Império, pelo que, desde logo, me senti em casa; lá andou o Trovoada e outras figuras que se viriam a assumir como os libertadores das colónias. Foi lá ainda que conheci o Nicolau Breyner, que não era um bom estudante, mas era talentoso e se fazia notar pela sua inteligência.
Ainda regressei a Luanda para passar as férias, mas tive de voltar para Lisboa, porque no Liceu Salvador Correia não havia a alínea h), que dava acesso a Arquitectura. E, concluído o 3º ciclo liceal, no Liceu D. João de Castro, onde ganhei um Diploma de Assiduidade exemplar e o Prémio de Arte Sacra desse ano, comecei a cursar arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, ESBAL, como bolseiro da Câmara Municipal de Luanda, o que me obrigava a ter uma média acima de 16 valores, que mantive até ao fim do curso. Ainda tinha direito a um prémio da própria Escola Superior de Belas Artes, mas esse foi um prémio que nunca cheguei a receber, porque, se bem que mo entregassem, retiravam-mo logo a seguir, devido ao meu comportamento político.
No primeiro ano, tive como colegas o Tomás Taveira, o Amílcar Aires, que era de Cabo Verde e mais conhecido como Mimica, o Pereira Chan, de Macau, entre outros, que viriam a acompanhar-me durante todo o curso. Está claro que, nessa altura, em 1960/61, quando entrei para a ESBAL, era a fase em que a Casa dos Estudantes do Império, CEI, estava no auge, foi um ano de grande agitação, e eu estava metido em tudo relacionado com Angola, e não só. Foi o tempo do processo de Beja, do processo de Goa, enfim, havia muito interesse pela evolução política colonial, despertado também, na época, com a publicação da revista “Mensagem”, que aumentou o contacto com a literatura africana. Deste período, recordo-me muito bem do Mário Pinto de Andrade, que já conhecia das Ingombotas, pelo papel que desempenhou na década de 50, em Lisboa.»
Em 1960, o caso de Goa tinha vindo agitar o marasmo português, e foi logo seguido do golpe de Palma Inácio em Beja. Depois, começaram as lutas académicas em Portugal, quando a Universidade portuguesa se dá conta de que, afinal, havia muitas coisas erradas. Logo a seguir, dão-se as primeiras fugas, para a França e Suíça, dos estudantes ultramarinos que estavam em Lisboa. Naquela altura, Troufa Real não acompanhou nenhum dos grupos que “saltaram” para Paris, mas acabou por ser preso no dia 28 de Junho de 1961, tendo ficado detido até Outubro, em Caxias. Foi julgado no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa, tendo sido defendido por uma célebre advogada, conhecida como a Emília do Cambão, que conseguiu pena suspensa apelando para que fosse levada em linha de conta a sua figura e a sua juventude.
De referir, o seu envolvimento na campanha de Humberto Delgado, em 1958. Afecto a Norton de Matos devido às ligações deste ao seu avô, que aliás esteve na origem de ser dado o nome deste general ao Balombo, que chegou a chamar-se Vila Norton de Matos, foi com entusiasmo que esteve presente quando aquele foi ao Liceu Camões, num célebre comício que reuniu a oposição. Assim como também assistiu à chegada de Humberto Delgado a Santa Apolónia e à célebre reunião junto da estátua de António José de Almeida, onde viu pela primeira vez a figura de Mário Soares, na altura um jovem. Lembra-se que, depois, veio a polícia, com gases lacrimogéneos, obrigando o Humberto Delgado a refugiar-se na casa do Keil do Amaral, junto da Casa da Moeda, onde é agora o Centro Comercial João de Deus.
«Quanto mais nos batiam mais gostávamos de intervir. Acho até que foram essas provocações e a repressão intolerável de que o governo de então usava e abusava, que me consciencializaram e levaram a sentir que deveria estar sempre presente e meter-me a fundo e a sério na acção política que ia sendo possível.»
Foi em Lisboa que aprendeu a gostar de conviver com gente da cultura e que se apercebeu de que isso era essencial para as suas actividades, a todos os níveis. Foi assim que, na inauguração duma exposição no Príncipe Real, em Lisboa, conheceu o Prof. Duarte Costa, que acabou por lhe dar aulas de guitarra clássica, tendo vindo depois a ser ele a dar aulas dessa disciplina numa escola que aquele virtuoso da guitarra abriu na Av. João XXI, onde, curiosamente, apareciam personagens como o pintor Carlos Botelho, o teatrólogo Fernando Amado, personagem fascinante, que foi o introdutor em Portugal da primeira tabela de atletismo e que orientava o Teatro da Comédia. Datam dessa altura as suas relações com o Carlos Paredes e o Fernando Alvim.
Acaboiu por fazer a especialidade de guitarra clássica no Conservatório Nacional com uma das grandes figuras da guitarra clássica europeia, o professor Emílio Pujol, de quem se viria a tornar amigo, tendo chegado a ir tocar a Lérida, a sua terra natal. Naquela altura tocava tudo, desde Bach a Vilalobos, chegou até a tocar no S. Carlos, a acompanhar o conjunto de Duarte Costa e ganhava ainda uns extras para equilibrar o seu orçamento com aulas pagas a 2$50 à hora, ao domicílio.
Entre outros, teve como alunos a Mara Abrantes, o Luís Cília, o Daniel Bacelar – introdutor do rock em Portugal – o Manuel Morais – o homem dos Segréis de Lisboa; abriu portas a muita gente, chegou a tocar com o famoso Carlos Paredes numa célebre festa de encerramento do ano académico.
E, além de ter tirado o “brevet” de piloto, na modalidade de acrobacia, trabalhou ainda em ateliers de arquitectura, tendo chegado a colaborara com um homem a quem sempre dedicou admiração e continua a cultuar: o arquitecto Cassiano Branco. Quer dizer, desdobrou-se em várias tarefas e actividades, todas desempenhando a preceito, conforme testemunhos dos seus vários amigos e conhecidos.
Mesmo antes de finalizar a licenciatura, foi o primeiro classificado no concurso público para a construção do Palácio da Justiça de Luanda, realizando durante os anos seguintes dezenas de projectos para a sua terra natal, sensibilizado pelos problemas e especificidades de Angola e do seu povo, o que o levará, mais tarde, a conceber, num projecto arrojado, uma nova capital para o país, a que chamou de Angólia, a situar num lugar que, do ponto de vista antropológico, deverá ser uma região de encontro de etnias, sem conflitos, terra de paz.
Em 1961, algumas das cadeiras de Belas Artes eram dadas na Faculdade de Ciências. Aí conviveu fraternalmente com o João Guterres, engenheiro e poeta, e conheceu, na luta académica, o Jorge Sampaio, o Abílio Mendes – que havia de tornar-se seu amigo – o Eurico Figueiredo, o Medeiros Ferreira, entre muitos outros. «Esta era uma geração que falava a toda a gente, que pugnava pelos direitos e pela liberdade; foram os protagonistas teóricos que sustentaram as bases éticas da Revolução de Abril. Ainda na Engenharia conheci o Fernando Vicente, que foi o entusiasta das festas do “Avante”, o Fisher Lopes Pires, o Vasco Gonçalves – um cerebral que é também um grande homem de cultura – o Augusto Fernandes, engenheiro notável que viria a ser ministro das Obras Públicas, entre muitas outras figuras que se viriam, depois, a revelar.»
Acabou o curso de Arquitectura em 66 e fez depois o estágio, a colaborar no projecto da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa. Na capital portuguesa, trabalhou com o Raúl Rodrigues de Lima, que tinha um atelier de élite, onde se faziam Palácios de Justiça e demais obras ligadas aos serviços prisionais. Neste atelier, na Praça de Londres, conheceu o Almada Negreiros, escultores famosos como o Leopoldo de Almeida, e o conhecido introdutor do cartaz em Portugal, Fred Kradolfer, com quem aprendeu muito sobre a importância e vantagem das relações com os artistas. Foi com eles que deu conta de que, para além da arquitectura pura, era também importante uma parte complementar que são os ornamentos, os quais referem memórias, História, e cuja relação do espaço com a funcionalidade da luz pura era essencial para determinar os elementos que constróem os objectos.
«Sou católico de formação, mas eu, como muitos outros, fomos apanhados por uma revoada de marxismo, porque o catolicismo português estava na altura muito ligado ao Estado e à ditadura, perversidade que nos criava muito mau estar em relação à Igreja. Obviamente, entrei também nos caminhos da consciência trazida pelos grandes textos pedagógicos, fundamentalmente de Marx, os quais me marcaram muito como investigador, por aquilo que me deram a conhecer das contradições, e ajudaram a perceber as diferenças entre o catolicismo puro da mensagem bíblica e a sua prática, embora nunca tivesse acreditado no materialismo dialéctico, pois mantive-me sempre ligado ao idealismo, às causas do espírito, da alma, ao grande arquitecto do Universo, a Deus.
É evidente que a minha formação em Portugal acabaria por acentuar o que eu sou, um produto luso-angolano, um produto colonial. Mas quando regresso a Luanda, já havia em mim uma caldeirada onde não escapava o papel de Cassiano Branco, que me marcou indelevelmente, especialmente ao descobrir a importância do papel do pentagrama e do pentágono em toda a sua obra, não só nos ornamentos mas também na própria arquitectura, revelando-me a sua filiação na Maçonaria, organização que conhecia miticamente devido às ligações do meu avô Deodoro com a Kuribeka, de Benguela, e com Norton de Matos. A importância da Maçonaria em Angola era tão grande, que, por exemplo, apesar do controlo político do regime, o General Humberto Delgado ganhou as eleições em Benguela, o que Salazar nunca viria a perdoar.»
Por isso é que, apesar de formado em Portugal, com uma cultura informada pela reflexão dos primeiros modernistas, desfralda a tradição recortada pela influência africana, como salientou, após 1980, o Arq. Pancho Miranda Guedes.
Efectivamente, a sua personalidade está profundamente marcada pela cultura angolana, que reflecte, obviamente, na sua obra, em especial pela insistência da introdução na arquitectura do elemento fantástico e pelo uso da cor, cujo imaginário próximo do mundo tropical arrastou com ele para estas paragens lusas.
Curiosamente, como já dissemos, o seu primeiro projecto, que venceria um concurso oficial em 1966 – feito com o Lima dos Santos, sobrinho de Raul Rodrigues de Lima, e que seria assinado por este, por os dois ainda não estarem licenciados –foi o Palácio da Justiça de Luanda, ainda agora à espera de conclusão.
Tendo regressado a Luanda, em 1967, logo após ter concluído o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, para trabalhar, como retribuição, na Câmara Municipal local, que lhe tinha concedido com esse objectivo uma bolsa de estudos, impor-se-á na capital angolana com obras que muito incomodaram o chamado Movimento Moderno europeu colonial, que tinha a ver com um ordenamento previamente inventado, justificado, mas que não tinha em conta as pessoas ali, e naquele momento.
Toda a sua filosofia de obra de arquitectura e de invenção da cidade, partindo sempre do princípio de que as cidades são as pessoas e que cada vez mais é isso o que se deve ter em conta, fará dele o defensor dos musseques de Luanda, como território sagrado de famílias que ali nasceram e constituíram a cultura e os valores humanos daquela sociedade crioula, em contraposição à especulação que durante muito tempo grassou e que parece estar a regressar, agora, ainda mais à solta.
Isto é, a sua obra foi sempre adaptada às circunstâncias de tempo e de lugar, inventariando não só a memória do lugar físico, mas, fundamentalmente, a memória do lugar humano, a memória histórica para fazer a cidade e construir a casa, fazendo marcadamente uma arquitectura simbólica que vai contextualizando nos sítios por onde passa, com um grande respeito e dignificação das pessoas.
Um dos seus trabalhos mais emblemáticos em Luanda foi, no entanto, uma agência bancária, que carregou de erotismo, na linha aberta com a publicação do livro “O Erotismo”, de Georges Bataille, editado então pela Moraes, do António Alçada Baptista. Foi uma das primeiras agências do Banco Pinto & Sotto Mayor em Luanda, em pleno bairro da Maianga, e ficou como referência inovadora, na qual pretendeu fazer uma homenagem ao conhecido gravador português Bartolomeu Cid, autor de gravuras que muito o fascinavam.
Nesta obra teve a colaboração quase imprescindível de Carlos Fernandes, artista plástico cujo espírito surrealista manifestava permanentemente em todos os aspectos da vida. O Carlos Fernandes não gostava de trabalhar, e assumia-o, mas gostava de viver bem, gostava de tudo o que era bom, e era amigo de toda a gente, desde que não o chateassem. E só trabalhava porque precisava de ganhar alguns tostões. Desenhava muito bem, na tradição dos surrealistas portugueses do Café Gelo em Lisboa, como o Cesariny, o Cruzeiro Seixas e o João Rodrigues, grupo que muito o marcou. Troufa Real conseguiu integrar peças dele em quase todas as obras que fez em Luanda, inclusivamente conseguiu meter trabalhos seus na remodelação do Hotel Turismo, feita pelo arquitecto Vasco Vieira da Costa, apesar da oposição deste.
As artes e a cultura em geral misturam-se na sua obra duma forma sem limites. Até o Sebastião Coelho, falecido em 2002, que era um homem da rádio, um jornalista, fez uma sonoplastia para um pavilhão da sua autoria, que foi o da Nocal na FILDA, em 1973, que integrou um poema do Manuel Alberto Valente, actualmente um dos directores da editora Asa, do Porto. E mesmo o Herberto Helder o acompanhou também, chegando a escrever um texto, com pseudónimo, sobre o Almada Negreiros, quando Troufa descobriu a casa onde este nasceu na ilha do Príncipe.
É obrigatório evocar aqui o Café Zero, de Luanda, que era o contrário da cultura oficial que se vive agora em Portugal, que é uma cultura institucionalizada, fechada numa redoma à volta dos Centros Culturais de Belém. Ali, a cultura era partilhada a comer, a beber, a desenhar, a amar, juntávamo-nos quase todos os dias e ao sábado era sagrado conviver com jornalistas, poetas, escritores, pintores, homens do teatro, gente como esse grande fotógrafo do Sul de Angola, que era dono da Colorama, o Fernando Chaves, também recentementeque falecido, que até há pouco fotografava, e muito bem, a sua obra. O Aníbal Fernandes era importante porque introduzia nas conversas os “bas-fonds” subterrâneos daquilo que poderia ser o abominável mundo das artes e da criação da cidade de Luanda e de Angola, mas mantendo-se sempre atento, com as ironias possíveis e próprias do grupo, a tudo o que se passava em Portugal no âmbito das artes, da cultura e da política.
Advogados, empresários, homens como o Paula, gerente da Casa Campeão, mas que aparecia com uma conversa interessante, o Vasco de Oliveira, irmão do fundador da Livrelco, em Lisboa, e actual proprietário da Livraria Galileu, em Cascais, o crítico de teatro Humberto Monfalino, que era também comerciante de automóveis, o Domingos Van-Dúnem, que foi o primeiro embaixador de Angola na UNESCO, o Angerino de Sousa, um profissional de seguros que era, acima de tudo, um extraordinário humorista, o João Fernandes, que veio a ser o último director da revista “Notícia”, com as suas maldições, as suas ironias, as suas bocas de sempre, ainda hoje com “A Chuva e o Bom Tempo” em “O Diabo”. Sem esquecer, entre muitos outros, o José Sebag, um grande jornalista que era um belíssimo poeta, o pintor Luís Jardim, desaparecido este ano, o actor Fernando Gusmão, o pintor Rocha de Sousa, o galerista Manuel de Brito, os encenadores Norberto Barroca e Carlos Avilez, as actrizes Laura Alves, Eunice Muñoz, Io Apoloni e Alda Rodrigues, assim como o marido desta, o José Campelo, e o Sande Lemos, não esquecendo o grande cronista e poeta Ernesto Lara Filho e o Liceu Vieira Dias, o maior músico angolano. E também homens de dinheiro. E lá apareciam, às vezes, os seus clientes, que eram sempre de primeira linha, como o Manuel Vinhas, o Jana Raposo de Magalhães, o Eugénio Correia da Silva, Conde de Paço de Arcos, e o João Marques Pinto, o pai, é claro.
Estes eram homens que permitiam as artes respirar. O Cruzeiro Seixas fez, à sua vontade, toda a colecção do Manuel Vinhas, que, depois, a veio a oferecer ao Museu de Angola. O Salão de Arte Moderna foi feito por um grupo onde pontificava o Troufa Real e naquele período foi o salão mais importante das artes que se organizava em todo o império português. Porque juntava o dinamismo do Núcleo de Arte de Moçambique – que ainda hoje está a dar provas de vitalidade – ali levando o Malangatana e o Chichorro, e a colaboração da Sociedade Nacional de Belas Artes, de Lisboa, SNBA, que estava praticamente apagada nesse período, mas que deixou o Manuel de Brito, da Galeria 111, organizar a recepção dos trabalhos para irem para o Salão de Arte Moderna de Luanda. O grupo conseguiu arranjar prémios de aquisição que constituíram a primeira herança do Museu de Angola, espólio que hoje qualquer museu do mundo cobiçaria, porque desde Noronha da Costa a Eduardo Nery, a Bartolomeu Cid, a Jorge Pinheiro, e a Júlio Pereira, enfim, tudo o que era modernidade em Portugal, até aos anos setenta, lá está. O júri era constituído, muitas vezes, por alguns conhecidos opositores ao regime, como foi o caso de Rui Mário Gonçalves e de Júlio Pereira.
Por outro lado, no Dia Mundial de Teatro, em 1972, era ele presidente do Clube de Teatro de Angola, conseguiu-se levar a Luanda homens como o Bernardo Santareno, Deniz Jacinto, Adriano Gusmão e Norberto Barroca, conhecidas figuras da oposição em Portugal, mas que eram, acima de tudo, homens da cultura. Quer no Café Zero quer na esplanada do Baleizão, à custa da cerveja Cuca, que era propriedade do Vinhas, e do presunto de Chaves arranjado pelo Tarique, convivíamos com a Lia Gama, a Eunice Muñoz, o José de Castro, o Nicolau Breyner, a Io Apoloni, o Vasco de Lima Couto, actores que passavam igualmente por sua casa.
Enfim, no tropicalismo da sua arquitectura encontra-se uma deliberada vontade de aprofundamento das relações culturais com África, para enriquecimento do nosso imaginário, que sempre foi feito de viagens e outros mundos. Disso é exemplo, um dos seus relógios, com palmeiras de cinco ramos e um triângulo mágico, que é, simultaneamente, uma assinatura e uma proposta cultural.
Conhecedor atento da arquitectura angolana, baseou-se, entretanto, em testemunhos da literatura histórica e social de Angola, para sugerir a construção, urgente, de uma nova capital para Angola, baseada em estudos arquitectónicos urbanos de autóctones, do País.
Segundo ele, “ao entrar-se no terceiro milénio, poderá (ou melhor, poderia) nascer uma nova cidade no centro de Angola: Angólia, uma nova capital. Cumpria-se assim a histórica vontade da criação de uma nova capital política da nação, na construção do futuro da paz conquistada pelo diálogo no encontro das ideias, da liberdade e da fraternidade entre os homens da terra angolana.”
Seria o símbolo da reconstrução angolana, do encontro dos Reinos Históricos de todos os grupos étnicos, das ideias liberais, dos direitos do Homem, do progresso político, económico, social e cultural. “Para salvar Luanda é necessário construir uma nova capital no coração de Angola, numa região de encontro de etnias”, insiste.
Seria uma cidade a construir no centro de Angola, que funcione como polo de atracção populacional numa região fracamente povoada, e que sirva como dinamizadora de investimentos e de cultura, o que viria facilitar muito a vida das pessoas e a administração, em melhores condições do que na actual capital, pois só a consciência e enraizados sentimentos de solidariedade permitem aos habitantes de Luanda viver nas condições actuais.
A ideia para a criação de Angólia nasceu na década de 70, em Luanda, quando ali desenvolveu  projectos de reconversão urbana e deu conta de que urgia levar, ao interior de Angola, parte de um progresso secularmente centrado no litoral, e era necessário renovar a consciência da própria identidade do País. Depois, teimosamente, foi juntando à sua volta diversos especialistas, portugueses, brasileiros e angolanos, conquistados para o projecto de construir uma nova capital.
Em declarações ao “Expresso” (15-06-1996), apontou que «A solução mais fácil é deslocar a capital de Angola para outra região, e assim se salvaria Luanda e se promoveria a qualidade de vida das populações, devido ao sítio previsto ser menos húmido e com temperatura mais amena. Daria origem a uma enorme poupança energética, por causa do clima – ar condicionado e desumidificadores”.
«A escolha da zona para implantar a nova capital atendeu a uma multiplicidade de factores. Desde a proximidade de rios à existência de vias de comunicação, passando pela situação climatérica e pela qualidade dos solos agrícolas. E foi tida em conta a neutralidade histórica da região para as diferentes etnias angolanas. Estrategicamente colocada no Centro do País, entre o Luena e o Cuito, Angólia juntaria essas características”.
«Em vez da lógica colonial, tem de se pensar em acabar o desequilíbrio entre o interior e o litoral, onde vivem 60 por cento da pessoas. É preciso salvar as cidades históricas. Por exemplo, em Luanda, a população tem que descer de cinco para apenas um milhão, talvez até mesmo o meio milhão de habitantes, porque para isso é que a cidade foi preparada. Conforme está, actualmente, Luanda é uma cidade com altos riscos sociais, de saúde, pois as infra-estruturas não acompanharam o ritmo de crescimento da cidade, por mais esforços que se façam. Ora, Luanda é uma cidade que considero património mundial, que deve ser protegida e acarinhada, porque ali se passou muita da História de Angola, a da escravatura especialmente, e a da liberdade também, com monumentos e sítios que têm de ser salvaguardados».
Por outro lado, é de capital importância pensar-se numa cidade central política, nacional, a localizar numa região que possa congregar etnias, valores antropológicos, e que, por razões de natureza humana, seja um sítio equilibrado para todos, para acabar com lutas ancestrais, acrescenta. «A cidade como capital política tem que ser dignificada, tem que ser uma cidade democrática, tolerante, moderna, compatível com as cidades capitais de todo o mundo, para a qual se exigem condições físicas próprias e um clima mais propício do que o de Luanda, que está numa região tropical, quente e húmida, quer dizer, imprópria para os serviços administrativos exigidos por uma capital. Tem que haver um esforço financeiro muito grande para dotar os ambientes bem como o conforto humano porque, como se sabe, nestas regiões, os serviços precisam de cuidados, e não é à custa do ar condicionado, nem à custa de artifícios tecnológicos, mesmo pegando na antiga arquitectura tropical, que se encontram as condições.
Porque a ventilação resolve o problema do conforto humano, mas não resolve o problema da humidade nos papéis e nos equipamentos electrónicos. Luanda tem uma humidade que atinge muitas vezes 90 por cento e às vezes mais, o que é incompatível para uma cidade terciária que tem de ser uma cidade capital, que vive de serviços, pelo que a humidade e a temperatura médias têm de manter-se num limiar de modo a que as coisas possam funcionar com eficiência. Seria uma nova imagem de um país independente, liberto, e que não tem que estar amarrado ao passado. Os americanos fizeram Washington, uma cidade inventada, política, para capital da federação e os brasileiros mudaram três vezes a capital; primeiro foi a Baía, depois Olinda e o Rio de Janeiro e, no século passado, passou para Brasília, uma cidade planificada de raiz especificamente para centro administrativo.
Aliás, a Índia fez também isso, assim como a Nigéria, porque as cidades inventam-se, não nascem como a mandioca, são criadas pelas pessoas, as pessoas é que têm que as fazer. Uma cidade é como um jardim, semeia-se a primeira planta e depois vai crescendo. Desde que os angolanos são independentes ainda não inventaram nenhuma cidade, pelo contrário, destruíram as poucas que tinham. Resultado, voltar àquilo que seria “oh tempo volta para trás!”, é um mau princípio, uma nação não se faz assim. Só os saudosistas é que pensam que Luanda deverá ser como nos anos 60 e 70 com a Marginal, o Zero, a  Versalhes, as pastelarias à europeia. Isso é uma utopia.
Luanda é, actualmente, uma cidade africana, que tem uma identidade nova, onde há uma convivência diferente, até no aspecto da política. Como diriam os marxistas – atenção, eu não sou marxista – para mudar de vida é preciso mudar a cidade. Nisto estou de acordo com eles, “changer la vie, changer la ville”, essa é mesmo uma condição de base. A primeira reflexão a fazer era uma análise introspectiva da sociedade angolana, que tem que ser levada a cabo pelos intelectuais, pelos investigadores, pelas universidades, e depois, pelos próprios arquitectos, angolanos, que já são muitos, os quais devem ter a consciência de que a arquitectura não se pode submeter à globalização, nem à internacionalização; se há uma luta contra a globalização nos planos económico e político, também deve haver nos planos da cidade, da arquitectura e da vida.»
Por isso mesmo, começa por ele próprio, assumindo-se, sem rebuço ou vergonha, antes pelo contrário, com muito orgulho: «Eu sou angolano e reivindico o meu direito, como arquitecto angolano, de também contribuir para a invenção da cidade em Angola. Tenho esta capital estudada, com uma grande equipa de angolanos, voluntariamente, porque não foi uma encomenda – porque nós, os arquitectos, também devemos ser como os escritores, como os poetas e como os pintores, devemos saber trabalhar com as utopias, com a invenção e fazer produtos que são de investigação. Esta minha cidade vale o que vale, ou seja, vale um sonho e espero que um dia alguém com uma consciência nacional, com uma consciência angolana, e com poder político, possa pegar nos sonhos dos poetas, nos sonhos dos arquitectos e das pessoas, fazer com que ela seja concretizada, porque as cidades são as pessoas.
Porque não foi por acaso que frequentei, em Londres, um curso dedicado ao planeamento nacional e regional e, depois, fiz a pós-graduação numa área que interessava não para a minha carreira académica para Portugal, mas sim para Angola. Aliás, eu fiz, sobretudo, investigação dirigida a Angola. Se forem ver as minhas publicações inglesas, os meus trabalhos dessa época, são todos dirigidos a Angola, com a excepção dum, que foi sobre o Serviço Ambulatório de Apoio Local, SAAL, que é uma matéria que me interessa, levado a cabo depois do 25 de Abril em Portugal, sob a direcção do Nuno Portas, quando este era Secretário de Estado. Todos os outros trabalhos são coisas que se dirigem à sociedade africana, angolana, e socialista na altura. Daí eu ter viajado, no âmbito da Architectural Association School de Londres, até Moscovo, Polónia, RDA e Checoslováquia, onde fui estudar os casos da habitação, não só de housing, habitação social, que rejeito, sob o ponto de vista de intervenção do Estado, mas também sob o ponto de vista da invenção nacional. Fui estudar como é que se pode promover a redução da população das cidades sem ofender os cidadãos e aumentar a sua rede de infra-estruturas, de modo a dar-lhe mais qualidade».
Aliás também não foi por acaso, que foi ele quem esteve na base do “assalto” à Câmara de Luanda, nos idos de 1974, quando o poder tinha mudado, sem, entretanto, ter conseguido abalar a edilidade local, que continuava, parada, mas como se nada se tivesse passado.
«No início de 1975, a minha ligação ao MPLA era tão grande que fui eu quem propôs e dirigiu a tomada da Câmara Municipal de Luanda, o que veio a acontecer com a colaboração de várias forças da altura, como a Maria do Carmo Medina, do Movimento Democrático de Angola, o Sousa Dias, o Ernesto Ferreira, o Zeferino Cruz mais o Antero de Abreu e o Eng. Carlos Ferrão, assim como de vários grupos vindos dos musseques. É evidente que primeiro assegurámos o apoio da Junta Governativa de Angola, chefiada por Rosa Coutinho, e do Pezarat Correia, José Emílio e Correia Jesuíno, assim como de outros membros do MFA.
Eu costumo referir que os gregos viviam melhor do que os actuais cidadãos, habitantes das cidades. Porque os gregos, quando viam que uma cidade estava saturada, não a deixavam crescer, construíam outra. E daí a expansão grega. Uma cidade é como um avião, tem uma lotação. A partir da lotação esgotada, faça-se outra. Os gregos e os romanos deram essa lição, que infelizmente se teima em esquecer, a não ser os americanos, na sua aventura da invenção nacional, ou os antigos colonos que fizeram Angola.
Porque, sublinhe-se, embora o esforço físico fosse partilhado por portugueses e angolanos, foi daqueles a inteligência administrativa, política e até diria estratégica. Não tenhamos ilusões, a rede urbana angolana foi inventada pelo Ministério das Colónias. As fronteiras foram delineadas pela Sociedade de Geografia de Lisboa, por militares e marinheiros, mas as cidades foram um acto de inteligência e de respeito pelas pessoas de então. Porque, para inventar uma cidade tem que se ter coragem, respeito pelas pessoas, inteligência, qualificação, formação, e foi para ajudar nisso que fui especializar-me a Londres, qualificar-me, tendo tido grandes professores destas áreas, alguns latino-americanos e outros ingleses, como Ronaldo Ramirez, Jorge Fiori, Hantarnis, Nick Jefry, entre muitos, como Rod Burgers, o homem do planeamento nacional, crítico à intervenção da auto construção na América Latina, e contra John Turner e as formas marxistas de intervir na cidade, como as micro-brigadas cubanas, por exemplo.»

 

Rodrigues Vaz
Jornalista