Se os desenhos e as pinturas de um pintor profissional se consideram produto da sua arte, de que serão produto as pinturas e os desenhos de um arquitecto como o é Troufa Real? Desde logo, e antes de tudo, não deverão ser entendidas como o produto de uma espécie de amador, mas sim como o de alguém que sabe muito bem o que faz.
O angolano Troufa Real – obrigado pela força das circunstâncias a trabalhar na capital do antigo império que subjugava a sua terra natal – merecidamente conhecido pela sua arquitectura inventiva de grande imaginação e criatividade, declaradamente anti-moderna, onde mistura sabiamente as raízes nacionais que o entroncam com símbolos de vária ordem doseados com intenções afirmadamente lúdicas, não pode actuar como tal senão sob o signo da arquitectura.
Efectivamente, o conceito de uma obra construída não só se distingue de uma devida à montagem em virtude do seu compromisso com a articulação unitária das partes (frente ao fragmentarismo da montagem de uma justaposição de elementos desconexos), como se distingue também (enquanto artifício) do que seria o fruto espontâneo de um desenvolvimento puramente natural.
Decididamente, se há algo que caracteriza a trajectória construtiva de Troufa Real, à parte a sua reconhecida competência técnica e a sua evidente originalidade formal, é a permanente evocação de configurações e processos extraídos do universo da natureza e não só como fonte de inspiração, mas também como «instância de controlo” (como ponto de partida e ponto de retorno): a memória da casa portuguesa conjugada com o simbolismo dos descobrimentos e toda a simbólica da Maçonaria.
Por isso, a questão é saber que lugar ocupam o desenho e a pintura nesse contexto. E a verdade é que, analisando a sua obra plástica, depressa nos damos conta de que ela não desempenha um papel meramente subsidiário ou complementar, negligenciável, mas sim uma função medidora mais importante do que se podia imaginar: a função de campo de ensaios, mesmo muitas vezes do ponto de referência da qual nascem e a que remetem os seus projectos e obras de arquitectura.
Isto não significa que os desenhos e pinturas de Troufa Real careçam de valor autónomo. De facto, na sua obra sobre papel encontramos não só esboços de estruturas edificáveis, mas sobretudo apontamentos de ideias, sonhos que se querem concretizar através da construção, mas que valem por si sós, como criação pessoal de quem sabe conceber e só concebe para que a vida seja mais digna de ser vivida, razão por que não só os seus projectos, mas também a sua idealização, têm sempre a ver com a festa que deve ser viver a cidade e as pessoas, objectivo e razão principal da arquitectura, isto é, com a vida verdadeira.
Embora os seus desenhos acompanhem a organização dos seus projectos, isto é, as suas linhas de força, que são as Casas Portuguesas, ligadas à evocação de Raul Lino e à memória de Cassiano Branco, com quem trabalhou; a simbólica, ligada à Maçonaria, que enforma os elementos de todas as suas composições; os barcos em terra, ligados ao mar e aos descobrimentos portugueses; no fundo, tudo se resume à primeira, as Casas Portuguesas, pois elas são o resumo da sua orientação, porque mesmo quando numa série de desenhos como as “Viagens” retrata outras paragens longínquas, são os elementos das Casas Portuguesas que vai fazer sobressair.
Mas os desenhos de Troufa Real não são apenas instrumentos ou espaço de experimentação, eles são também testemunho dos vínculos da sua arquitectura à experiência da natureza e às grandes correntes da arte contemporânea, que, por outra via, liga à sua obra, através da colaboração de um punhado de artistas plásticos de renome, seguindo o método de trabalho dos seus mestres.
Como diz aliás Nuno Ladeiro, “Dos desenhos de Troufa Real ressaltam a humanidade e a tradição. Troufa Real, o homem, o arquitecto, usa o desenho como suporte da imaginação na criação de imagens que podem ser as de um azulejo, de um edifício, de um monumento ou de uma visão”.
E mais adiante salienta: ”Os seus desenhos transportam-nos ao universo de uma utopia onde navegam os navios das descobertas que se materializam em edifícios (Centro de Formação Profissional em Portimão), igrejas ( Igreja de S. Francisco Xavier), num viajar que representa a forma móvel e aberta de estar na vida de um arquitecto que quisera viver num barco.
O imaginário do Império é revelado nos desenhos dos globos das fachadas, no globo do Monumento à Lusitude, das casas portuguesas prolongamento do pensamento de Raul Lino, dos cordames manuelinos presentes no desenho “Simpatia e União”, dos elementos da emblemática dos Irmãos da Costa de Portugal.
As geometrias estão patentes no triângulo sublime extraído do pentágono salomónico que se encontra na planta da Casa da Serretinha, nos Açores, no ex-libris TR e no mostrador do Swatch e aparecem ainda associadas a símbolos evocativos da terra-mãe como as palmeiras de cinco pontas representando generosidade e fertilidade”.
Enfim, o processo de encontrar novas ideias passa pelo diálogo de quatro intervenientes em sequência, o cérebro, a mão, o registo numa superfície, o olhar, e assim sucessivamente. As novas ideias surgem por vezes de um rearranjo das antigas. O olhar sobre o desenho e o desenhar trazem mudanças por vezes involuntárias, que geram novas formas. Troufa Real desenha com o humor, a expressividade mantendo-se atenta aos sinais devolvidos pelos desenhos daquilo que não existe, não pode ser visto e é imagem de um pensamento.
Sempre quis ser pintor, declarava Troufa Real à revista “Ego”, Lisboa, em Março de 1997. “Com oito anos, fiz mesmo uma exposição numa livraria em Luanda, mas como, na época, ser-se pintor era tido como um acto de loucura, e de certa libertinagem, obviamente que os meus pais interferiram. A alternativa foi a arquitectura. Não me senti frustrado, pois considero a arquitectura uma arte.”
A sua primeira exposição foi recebida com particular entusiasmo pelo jornalista Agnello Paiva, que dirá no “Diário de Luanda”(22-1-1950): “Trata-se duma criança vivaz, com natural vocação para a pintura. As suas aguarelas têm o cunho impressionista. Inclina-se, sobretudo, para os quadros da Natureza que ele fixa em pinceladas incisivas, com o trocadilho das cores, imprimindo nos seus trabalhos a luz forte que exalta a firmeza do traço”. E acrescenta: “José Deodoro procura os quadros da natureza tal como ela é ou como se acredita que ela seja. Tudo objectivo na luta entre a ideia e a forma. Procurando as ideias gerais, procura a verdade. É fácil compreender que, procedendo assim, nos dá a certeza da sua inclinação para o impressionismo: maior objectividade, poesia nas imagens, pintura ao ar livre, divisão de tons puros, sombras luminosas”.
A seguir à sua primeira exposição, apresentará outra, passados dois anos, que o malogrado pintor Roberto Silva, de quem foi discípulo, assinalará de maneira encomiástica, ao mesmo tempo que se autoculpava: “Tentei fazer dele o que Malta (Eduardo) faz aos filhos: ensiná-lo a desenhar correctamente. Resultado: matei-lhe a ingenuidade tão ambicionada pelos modernistas. Relevem-mo também! – Não faço mais do que penitenciar-me! Pudera! Se me sinto mais para receber do que para dar-lhe lições! Pudesse ele ou quisesse manifestar o que pensa e talvez eu o devolvesse aos seus… com uma formal escusa… É que ali, naquele corpo pequeno, está, na verdade, o espírito de uma grande precocidade artística!”
Troufa Real diz que não é bem assim, que não perdeu a ingenuidade, com a formação. Ganhou foi uma certa perversidade, muito próxima da malandrice à moda angolana, que tem também a ver com um certo erotismo, que irá aparecer na sua obra posterior, sempre que pôde e as circunstâncias lho permitiram. Trata-se, sobretudo, de quebrar tabus, razão por que, sempre que foi possível, isso vem à superfície em casas que projectou em Luanda, Portugal e nos Açores.
A nível imediato, porém, pelas razões indicadas e por outras derivadas dos circunstancialismos e limitações da época, estas experiências não terão repercussão, mas, na verdade, marcá-lo-ão, indelevelmente, tudo fazendo prever que, mais cedo ou mais tarde, teriam de dar fruto.
Naturalmente, dada a sua profissão de arquitecto, em que precisa de executar incessantemente esboços e estudos de vária ordem e de diversos objectivos, o surgimento do desenho como modo de expressão e de pensar tinha de despontar, a propósito de tudo, quer do ponto de vista profissional, quer do ponto de vista pessoal, dir-se-ia que era um resultado inevitável.
O arquitecto Michel Toussaint, seu amigo e colega dos tempos de Luanda, compreendeu-o acertadamente ao analisar os desenhos que fez sobre Macau, quando este sentiu o drama daquele território como arquitecto: “Troufa Real utilizou o desenho informal. É a necessidade de reflectir através dos meios da profissão. Assim se está ante um caso em que o desenho não é uma comunicação com a obra, rigor construtivo, mas sim imagem, apontamentos, são inúmeros os casos de arquitectos, pintores e outros artistas que sistematicamente desenham num papel de ocasião, num cartão ou num guardanapo de papel. A sua espontaneidade manifesta directamente o pensamento do autor, tanto na observação como na expressão da ideia. Muitas vezes as opiniões multiplicam-se, o detalhe coloca-se no geral. À opinião acrescenta-se o utópico, tanto se estiver entre paredes como na terra ou no mar. Entra-se num amplo espaço da imaginação criadora, a verdade de todas as artes.”
E prossegue: “Normalmente, tais desenhos em papéis de pequenas dimensões, terminam no lixo. Mas quanto se perde para a futura compreensão de uma obra, da génese dum trabalho, das intenções de uma forma arquitectónica, sequência espacial ou detalhe colorido!”
“Troufa Real exprime os seus sentimentos nestes pequenos desenhos que vai fazendo com a caneta. (…) Nele isto é que faz despoletar tais propostas. Por um lado, a expansão da cidade (Macau) pelas águas, que já é uma realidade do nosso século deixando livres os actuais limites das orelhas, praias e portos, envolvendo a península num cerco. Como uma moeda de duas faces que abre e fecha simultaneamente o seu território. Expõe a contradição de adopção de Macau às alterações profundas da região, mas, ao mesmo tempo, mantém a sua identidade de enclave, sinal em território chinês num contraditório momento em que são os próprios chineses a propor a continuidade desta diferença de Macau e Hong Kong, após 1996, perpetuando uma particularidade que, aparentemente, é menosprezada.
Observando melhor as imagens arquitectónicas de Troufa Real, verificam-se referências chinesas e ocidentais. O muro de topo ondulado de jardins do império do Meio, que se transformam em grandes edifícios, também ondulados, como os místicos dragões, defendendo a cidade contra os males ocidentais”.
Realmente, Troufa Real exprime os seus sentimentos nestes pequenos desenhos que vai fazendo com a caneta. É um antigo hábito, rotina de sempre. E, a seguir aos desenhos de esboços, vieram os desenhos por si próprios, em que Troufa Real, virtuoso no traço, exacto e preciso, muitas vezes subtil, conjuga com destreza a tradição europeia do desenho com uma maneira muito pessoal de o apresentar, mantendo sempre um ritmo dinâmico e peculiar.
Utilizando intencionalmente o pequeno formato no sentido de lhes dar mais profundidade sem abandonar a simplicidade quase de asceta, acaba por lhes fornecer uma complementaridade entre o visual e o conceptual, equiparando o visual com os sentidos, compatibilizando a amabilidade das imagens com o esforço duma contemplação analítica, de uma busca do sentido estrutural das coisas mais simples.
Daí o seu aspecto mágico no que a natureza muda o seu poder e a sua razão produzindo o passo indescritível da consciência à forma. Jogando essencialmente com a sobriedade, incluindo até uma certa rigidez de algumas formas, os seus desenhos de viagens têm, involuntariamente, tanto de mediterrânico como de africano, não só pela frescura com que se mostram mas sobretudo pela luz inevitável, que neles aparece como outro conceito espacial da escrita pictórica, com outro sentido das medidas, numa manifesta vontade de apanhar no seu todo as paisagens de que se acerca, como se houvesse produzido o definitivo transvasamento para um mundo que até ali era uma circunstância e que a partir de agora será, sem dúvida, o ideal para o seu comportamento.
Relegado injustamente, nas últimas décadas, para um lugar que dir-se-ia menor no panorama da arte contemporânea, mercê de muita ignorância e de muitos jogos menos honestos no mercado da arte, a verdade é que o desenho desempenhou um papel imprescindível nos vários movimentos estéticos que marcaram a contemporaneidade do século XX. Tanto é assim, que algumas das mais radicais transformações artísticas, como o surrealismo, não se podem entender sem a presença insubstituível do desenho. Porque ele é, antes de mais, uma libertação, para a actividade criativa, e daí é que vem o seu fascínio, onírico ou racionalista. Troufa Real entendeu bem este papel, até porque foi companheiro dos malogrados João Rodrigues, Gueifão Ferreira e Carlos Fernandes, para quem o desenho era o alfabeto sublime da comunicação poética surrealista, pelo que não admira que o tenha escolhido, não como esboço para uma obra pictórica ou simples estudo para o seu trabalho profissional enquanto arquitecto, mas como obra em si mesma.
Como disse o professor Augusto Pereira Brandão, “Os seus desenhos, os seus sonhos parecem-nos levar a uma cultura que nos envolve, nas valências culturais, que tanto podem ser do expressionismo, como do primitivismo africano. É neste duplo ambiente que a sua enorme imaginação escreve para o Mundo, desenhando sonhos, utopias, brilhantes atmosferas que abrem as portas à cultura multi-atlântica de um post-modernismo próprio. É neste campo, em que a intuição anda à solta, em que se cria com loucura, que Troufa Real se apresenta como vidente de um futuro humano, grandioso e multicontinental.”
O que, de algum modo, explica a razão de estes serem desenhos intemporais, representações esquemáticas de sítios, lugares e pessoas, coisas transformadas em visão quase simbolista que ele vai edificando desde uma singular metamorfose a uma hermenêutica única e original.
É a arte convertida em manifestação de inquietações interiores, como salto para a plena liberdade, não escondendo a autenticidade duma escrita gráfica criativa de quem vê na arte da representação uma ferramenta básica de comunicação entre iguais.
Durante a Idade Média, os anglo-saxões, logo que os seus filhos ultrapassavam a difícil idade da adolescência e estavam prontos para entrar na vida adulta, davam-lhes uma sacola cheia com o indispensável, e apenas com um instrumento musical, na maior parte das vezes, mandavam-nos correr mundo, pois que não há melhor escola do que a vida. Tal costume recomeçou a ser utilizado essencialmente pelos nobres ingleses no século XIX, que, ao mandarem os seus filhos, antes de se casarem, fazer o seu “tour”, nem sequer adivinhavam que estavam a dar origem a uma palavra que hoje dá a volta ao mundo no sentido mais literal do termo – o turismo.
Não com este turismo, mas no primeiro sentido de conhecer mundo e aprofundar a vida é que devem enquadrar-se as viagens de Troufa Real, todas feitas sempre por nobres desígnios. Assim, por exemplo, visitou Moçambique para conhecer Pancho Miranda Guedes, Trás-os-Montes para descobrir Nadir Afonso e Viana de Lima, e, quando ainda estudante, Brasília recém-inaugurada para encontrar Óscar Nyemeyer.
De todas as suas viagens nos dá notícia através duma das séries dos seus desenhos objectivamente esquemáticos e concentrados na linha, alguns, audazes e vigorosos, expressionistas ou deliciosamente desenfadados, outros, mas identificados entre si pela segurança dos traços, manifestando o seu estilo particular através duma sensibilidade que incide no que lhe é próximo, na vivência do que o vai envolvendo, na comunhão com o privado. Assim, paisagens, amizades e sítios compõem o território único em que se encontram e desenvolvem os seus interesses.
Nessa medida, é que, de várias maneiras, todos os seus desenhos põem em relevo o valor e a importância do desenho para compreender a elaboração da sua obra arquitectónica.
Se no plano da criatividade os caminhos estão abertos a toda a imaginação e a todas aventuras intelectuais, a nível de esquemas mentais já não há mais nada novo à face da Terra, como já acentuavam há mais de dois mil anos os filósofos da chamada Antiguidade Clássica.
Sendo, antes de mais, um imaginativo, um intuitivo, um criador nato, qualidades que o transformam numa personalidade singular na cultura arquitectónica dos nossos dias, como tem sido reconhecido pelas pessoas que conhecem o seu trabalho, quer a nível arquitectónico, quer a nível plástico, Troufa Real, senhor de uma ambivalência lúdica e criadora, de cariz acentuadamente utópico, cuja característica principal é a capacidade de sonhar, aparece efectivamente, no panorama cultural agora felizmente a renovar-se, malgrado muitas resistências dos mais variados sectores, “como um homem de paixão, com quem se aprende a sonhar”
Porque, antes de mais, Troufa Real prioriza o universal e, para isso, não há nada melhor do que partir de princípios primordiais essencialmente locais, como o mito do Quinto Império, isto é, o império preconizado pelo grande mestre da Língua Portuguesa que foi o Padre António Vieira, um império que se há-de impor pela Cultura, pelo espírito, que é, afinal, o destino dos portugueses.
Rodrigues Vaz
Jornalista