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Jan 09

Os Ateliers TR, Sítios de Convívio e Festa

 

Como lugares de trabalho efectivo de projectar arquitectura, que eram também sítios de criação, os ateliers onde trabalhou, ao longo de todo o seu percurso, foram sempre pontos de encontro, convívio cultural e festa, especialmente a partir do seu regresso a Luanda, quando já se entrecruzavam nele muitas influências e misturas, onde não escapava o papel de Cassiano Branco, que o marcou indelevelmente, especialmente ao descobrir a importância do papel do pentagrama e do pentágono em toda a sua obra, não só nos ornamentos mas também na própria arquitectura, revelando-lhe a sua filiação na Maçonaria, organização que conhecia miticamente devido às ligações do avô Deodoro com a Kuribeka, de Benguela, e com o Norton de Matos.

Na altura, quem tinha bolsa de estudos duma instituição obrigava-se a prestar-lhe cinco anos de serviço logo após a formatura, pelo que, assim que acabou o estágio em Lisboa, durante o qual casou com uma advogada, a Joana Henriques, regressou a Luanda para trabalhar na Câmara Municipal.

Ali, foi viver primeiro para a Avenida dos Combatentes, depois para o bairro Alvalade, e finalmente para o bairro Prenda, já com a mãe das suas filhas.

De passagem, trabalhou primeiro com o Arquitecto Vasco Vieira da Costa, cujo proverbial feitio difícil ultrapassou de vários modos. «O atelier dele estava naquela época praticamente fechado, mas animei-o e ele reabriu-o comigo. Já lá tinha passado o Artur Taquelim, entre alguns outros, mas, naquele momento, estava inactivo. Apercebi-me que a passagem dele pelo atelier do Corbusier, com o Niemeyer e o Nadir Afonso, o tinha marcado muito, em alguns aspectos positivamente, mas noutros nem tanto. Ele trazia uma cidade na cabeça, que era a racionalização da cidade das pessoas, importada para impor às pessoas. Ele era um homem muito interessante, muito culto, casado com uma americana, mas era um fanático pelo movimento moderno, o que nele era muito contraditório, pois que este assenta fundamentalmente em valores que têm muito a ver com o materialismo dialéctico, que era exactamente o contrário de tudo o que ele sentia e pensava. Mas, no fundo, os objectivos eram os mesmos, isto é, o Movimento Moderno tentou sempre fazer não as cidades para as pessoas, mas submeter as pessoas às cidades idealizadas. Esta cidade é a do isolamento da administração pública, do direito do uso e abuso administrativo, que tenta encurralar, como gado, as pessoas no cimento, praticamente metê-las nos currais».

Isto começou a incomodá-lo, porque aquela era uma cidade feita a partir dum sonho tecnocrata baseado na organização e na produção, com valores que não tinham nada a ver com a História nem com o passado e o presente das pessoas e muito menos com África. Era a cidade dos Brancos, feita por Engenheiros, Economistas e Juristas que “Sabem tudo… e não deixam nada!”. Era um corte radical com o que ele pensava sobre o que deveria ser uma cidade, porque, enquanto ele privilegiava a  humanidade a todo o preço, os adeptos do Movimento Moderno serviam-se quer da arquitectura quer da cidade como meio de produção e promoção, tendência que, felizmente, viria mais tarde a ser desmontada e a desmoronar-se.

Ora a cidade do Vasco Vieira da Costa era uma cidade artificial, embora funcional; ele preocupava-se com as avenidas, com as vias, aliás mesmo durante o regime salazarista ele tinha sido acusado de ter feito um bairro com passeios só dum lado, foi essa uma das razões porque foi afastado da Câmara Municipal de Luanda. «Mas, quer se queira quer não, o Vasco Vieira da Costa foi um dos arquitectos modernos da cidade de Luanda mais significativos. Ele assumia-se como um arquitecto colonial, trazia uma mensagem, como, aliás, afirmou na tese que defendeu no Porto em 1952. Diria, antes de mais, que ele era um técnico de arquitectura. Eu gostava dos musseques e ele achava que deviam ser deitados abaixo. Era esta a lógica que nos separava profundamente. Enquanto o principal objectivo do meu trabalho eram os angolanos, ele trabalhava para a sociedade branca; resumindo, ele era o arquitecto dos brancos, como aliás a maioria dos arquitectos que trabalhavam então em Angola, e eu era o arquitecto dos negros. Por isso é que ainda hoje, em Lisboa, sou incómodo e, por isso, afastado dos eventos que têm a ver com a memória saudosista dos portugueses em África. O Pancho Miranda Guedes é um dos poucos que se safam desse colonialismo (mesmo que moderno) em África».

O seu primeiro atelier próprio em Luanda viria a ser nas águas-furtadas de um prédio na Avenida António Barroso, primeiro em sociedade com o Jorge Herédia e, posteriormente, com o Canto Lagido. Nele trabalharam os filhos de muitos militantes do MPLA, como o Liceu Vieira Dias e o Mendes de Carvalho, que estavam na prisão naquela altura, e por lá passaram muitas personalidades de vários quadrantes e origens. «O atelier de Luanda era um lugar sagrado. E foi uma honra ter estado associado a Jorge Herédia, arquitecto de grande rigor e qualidade e aristocrata que impunha naturalmente um ambiente de grande qualidade e com quem aprendi a importância do detalhe pormenorizado.»

Depois do seu regresso a Lisboa, o seu primeiro atelier foi na Rua da Emenda, com o Michel Toussaint Alves Pereira, o Luís Bissau e a Lina Pedro, após o que se mudou, em 1986, para as instalações onde ainda agora se mantém, na Rua da Horta Seca, num edifício oitocentista onde, desde o início, pôde aliar a descoberta com a recuperação de frescos que fazem do edifício uma casa única, e depois pôde recriar um ambiente cultural, quer promovendo exposições de artistas plásticos, das quais algumas constituíram verdadeiras plataformas de lançamento, quer recriando o ambiente escolar, ao finalizar a formação de estagiários. Das exposições realizadas no seu atelier, que funciona também como templo e lugar de criação e de invenção, podemos salientar, além das dos artistas da casa, que foram, desde sempre, o Júlio Pereira e o Carlos Fernandes, as de Cruzeiro Seixas, Artur Varela, Pepe Blanco, Eduardo Zink, Luís Osório, João Rodrigues, entre outras.

Além dos já citados, Troufa Real elaborou estudos e projectos em Angola, Portugal Continental, Madeira, Açores e Macau nos domínios do Planeamento Urbano, Arquitectura e Design, quer isoladamente quer em regime de colaboração ou de associação com Raul Rodrigues Lima,  Francisco Pinto da Cunha, Augusto Pereira Brandão, Francisco Zinho Antunes, Coimbra Neves, António Pessegueiro, Ana Torres, Colei and Meiring (SA), Werner Shillinger (CH), Tomás Taveira, José Soalheiro, Teresa Castro, Solano de Almeida, Lima dos Santos, João Rosado Correia, Daciano Costa, Gonçalo Ribeiro Telles, Francisco dos Santos, Francisco Xavier, Belém Jorge, Eurico António, e com os engenheiros civis Prof. Edgar Cardoso e Valério Guerra Marques.

 

Rodrigues Vaz
Jornalista