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Jan 06

A Simbólica nos Desenhos de Troufa Real

Se no plano da criatividade os caminhos estão abertos a toda a imaginação e a todas aventuras intelectuais, a nível de esquemas mentais não há mais nada novo à face da Terra, como já acentuavam há mais de dois mil anos os filósofos da chamada Antiguidade Clássica.

Sendo, antes de mais, um imaginativo, um intuitivo, um criador nato, características que o transformam numa personalidade singular, na cultura arquitectónica dos nossos dias, como tem sido reconhecido pelas pessoas que conhecem o seu trabalho, quer a nível arquitectónico, quer a nível plástico, Troufa Real, senhor de uma ambivalência lúdica e criadora, de cariz acentuadamente utópico, cuja característica principal é a capacidade de sonhar, aparece efectivamente, no panorama cultural agora felizmente a renovar-se, malgrado muitas resistências dos mais variados sectores, “como um homem de paixão, com quem se aprende a sonhar”, como disse o João Soares da edilidade lisboeta e seu amigo que sempre fez questão de não lhe entregar nenhum trabalho por recear ser acusado de promiscuidades amiguistas, embora o tenha convidado para inaugurar a Sala do Risco, o que recusou, recomendando, em contrapartida, que deveria ser o Mestre Frederico George a fazê-lo, o que aconteceria com tanta oportunidade, que este viria a morrer ainda com a sua exposição ali patente.

No início de 2001, Troufa Real expôs na Galeria Hexalfa, em Lisboa, os seus desenhos subordinados ao tema “Simbólica”, de certo modo uma homenagem ao  próprio nome da Galeria, a sugerir relações com a Grande Tradição, pelo que os seus desenhos relacionados com esta temática tiveram, neste espaço, o “templo ideal”.

Porque, é tempo de falar sem rodeios, para lá da sua criatividade individual e inevitável, a nível profissional, toda a obra de Troufa Real tem a ver com a geometria sagrada do Templo, cujo princípio ordenador, por si só, é capaz, ainda agora, de transmitir aos sentidos a visão de equilíbrio e de sentido da vida de que deve ser portadora toda e qualquer obra de arte.

Entre a Ética e o Fantástico, salientando o discurso da sua vertente esotérica, os desenhos de Troufa Real, assim como a sua arquitectura, têm a ver sobretudo com a imaginação e um marcado simbolismo, que procuram nos contrastes e oposições – a luz e as trevas, a terra e o mar, o branco e o negro, a sabedoria e a ignorância, a força e a fraqueza – o pretexto fundamental de uma obra que tem como linhas de força, além do fascínio da arquitectura, o imaginário do Império, nas suas principais opções – barcos em terra e petroleiros – as Casas Portuguesas e os símbolos das cores, correspondendo o branco à Sabedoria, o vermelho à Força e o azul à Beleza, na realidade as cores da bandeira francesa saída da Revolução de 1789, por sua vez, respectivamente símbolos da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. E, como alternativa ao branco, há ainda o amarelo, símbolo do sol e da luz.

É evidente, portanto, na obra de Troufa Real, a componente maçónica, a qual, como é natural, tem raízes profundas na sua própria família, pois seu avô materno, Deodoro Faria, que foi um dos homens fortes do Balombo, Angola, era amigo do patriarca da família Bernardino, do Bailundo, e do General Norton de Matos, todos ligados à causa maçónica, tendo acabado por homenagear o antigo Alto Comissário em Angola, impondo o nome deste quando da elevação daquela povoação a concelho, como Vila de Norton de Matos, de cuja Câmara Municipal chegou a ser presidente. Balombo, onde no início do século XX foram descobertas as célebres águas quentes, tal como as de Chaves, de onde o seu avô era natural, que vieram a ser denominadas do Kota-Kota, foi aliás pretexto para uma regular correspondência entre o seu avô Deodoro e o General Norton de Matos, um dos poucos dirigentes portugueses que no século passado melhor perspectivou o futuro do país angolano, embora segundo uma óptica imperial.

Alertado por esta razão para outras realidades que o regime do Estado Novo teimou sempre em esconder das massas, que queria manter ignorantes, não admira que, quando Troufa Real regressa a Luanda, em 1967, encete relações com personalidades que a estas organizações discretas – mantidas sempre activas apesar de “proibidas” – estavam ligadas, nomeadamente o dr. Eugénio Ferreira, que foi durante muitos anos representante do Grande Oriente Lusitano, GOL, em Luanda, o oftalmologista Sousa Dias, o Franco de Sousa, co-fundador do MPLA, e o dr. Zeferino Cruz, famoso dentista em Luanda nos anos 50 e 60, em cujo barco de recreio se fizeram muitas reuniões, e cuja casa no Futungo de Belas viria a ser a primeira residência em Luanda do primeiro presidente angolano, dr. Agostinho Neto.

Neste rol é ainda de salientar a acção do comandante Coimbra, até há pouco Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano, iniciado na Maçonaria no Lobito, cujo saber e quantidade de informações muito ajudaram o desenvolvimento de um certo esclarecimento político – pelo menos o que era possível, nas circunstâncias do momento – assim como da Kuribeka (Benguela), os quais de alguma forma contribuiram para que, como já referimos, quando das eleições de 1958, tenha sido vencedor na maior parte das cidades angolanas o general Humberto Delgado, o que Salazar nunca viria a perdoar.

A esta vertente esotérica Troufa Real manter-se-á sempre fiel, marcando com execução apaixonada mesmo as suas “Casas Portuguesas”, onde a construção do Templo está sempre presente assim como toda a simbólica que a acompanha. E mesmo nos textos que, de vez em quando, é obrigado a escrever sobre qualquer assunto, esta componente vem amiúde ao de cima.

Por exemplo, num muito elucidativo depoimento para o livro “Cassiano Branco: Uma obra para o futuro”, Troufa Real assinala a certa altura: «…no Café Nicola… encontrava-se normalmente com  companheiros de ideário clandestino, da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade. Artistas, homens de letras, colegas (muito poucos) gente “maldita”, suspeita e incómoda ao regime. Todos tinham um ponto comum, uma certa e discreta  marginalidade dentro do sistema social estabelecido.”

E, depois de dar uma ferroada nos arautos do “movimento moderno”, a quem não perdoa toda uma série de incoerências, ainda consegue salientar humoristicamente que Cassiano Branco “dava-se com pouca, mas notável gente, interessada na sabedoria, na beleza e no debate fraterno das ideias”. E, a terminar, não deixa de lembrar: “Cassiano Branco é, para além da sua obra, uma referência. É mais um exemplo que nos fica, depois de louvar os mortos depois de maltratados em vida…”

Se, como já dissemos, a vertente simbólica acompanha sempre a sua produção, ela tem sido especialmente marcante nos seus relógios, que executou para algumas nobres causas: o PS Watch para a campanha legislativa de Jorge Sampaio, o Palmeira para uma campanha anti-droga, o Rebeldia para a Loja Rebeldia do Grande Oriente Lusitano.

Um deles, com palmeiras e um triângulo mágico, é, simultaneamente, uma assinatura e uma proposta cultural. Noutro, um relógio de parede executado para a Casa Fernando Pessoa, que é, antes de mais, uma homenagem ao grande poeta, a semi-esfera recorda o Sol, com os seus doze raios flamejantes, a Estrela da Vida. O Triângulo Sublime é retirado do Pentágono, símbolo de Salomão, que já tinha servido para o seu próprio ex-libris, uma palmeira – por sua vez, símbolo da sua terra natal, na vertente da fertilidade e da generosidade – de cinco ramos e, portanto, com cinco pontas, curiosamente tal como as tinha desenhado apenas com sete anos de idade, ainda ele não imaginava como iria ser o futuro. O Desenho (Sagrado), as Cores e os Materiais na tradição Barroca (Ouro, Azul Celeste, Talha) representam a grande mudança do pensamento, pela Liberdade, Igualdade, Fraternidade (Galileu, Marquês de Pombal, Liberalismo, Primeira República, 25 de Abril). Da cabala do Pentágono na sua ordem numérica, à geometria sagrada do Templo e à ordem do tempo (horas, minutos e segundos)11=12, um pouco à maneira de Almada 1+1=1, Troufa Real invoca recorrentemente, quer pelas formas e quer pelas cores, referências a símbolos maçónicos, até pelo pêndulo do relógio, de grande dimensão e forma piramidal, símbolo ancestral que é, ao mesmo tempo, evocação fálica e de origem do mundo.

De uma maneira geral, os seus projectos, e naturalmente os seus desenhos, que são muitas vezes a génese deles, andam à volta de uma temática muito própria que se desenvolve e cruza com as linhas de força da terra onde nasceu – Angola – e o país onde estudou e agora trabalha – Portugal  – ou melhor, Lisboa. Neste sentido, a sua principal temática, quase mítica, anda à volta do que ele chama “Imaginário do Império”, subdividida em “Barcos em Terra”, homenagem ao povo que desbravou o mar, “Petroleiros”, a nova saga da necessidade da interligação entre os continentes, e “Casas Portuguesas”, de vários modos o reconhecimento do fascínio que o equilíbrio da arquitectura de Raul Lino sempre lhe mereceu, devido ao entrosamento que conseguiu entre uma certa rigidez do Norte e a amenidade das marcas do Magreb na Península Ibérica, recuperando a relação mediterrânica numa simulação dócil, onde os azulejos têm uma função primordial, estilo arquitectónico que viria a desembocar no que classifica estilo Português Suave, que tem por epígonos os arquitectos Cassiano Branco, Cristino da Silva e Carlos Ramos, este, autor, em pleno ambiente pombalino, do célebre edifício da Casa da Imprensa, em Lisboa, com as suas linhas simples e objectivas, mas em profunda ruptura com todo o ambiente que o enquadra, embora paradoxalmente, na sua sintonia.

Porque, antes de mais, Troufa Real prioriza o universal, e, para isso, não há nada melhor do que partir de princípios primordiais essencialmente locais, como o mito do Quinto Império, isto é, o império preconizado pelo grande mestre da Língua Portuguesa que foi o padre António Vieira, um império que se há-de impor pela Cultura, pelo Espírito, que é, afinal, o destino dos portugueses, cujos emigrantes em diáspora sem fim acabam por funcionar como uma espécie de missionários da Cultura do Ocidente, encerrando agora a elipse com o aparecimento de Portugal como terra de imigrantes.

É, aliás, esse mesmo sentido ecuménico que o leva a utilizar, desde 1972, nos seus desenhos, um papel especial de manufactura chinesa que compra habitualmente em Macau, com as dimensões de 7.50×12.50cm, seu companheiro de sempre, apenas substituído eventualmente por guardanapos de papel, e que acaba por já funcionar como uma das suas idiossincrasias, valendo como assinatura, firmado com canetas igualmente chinesas.

Nas suas últimas obras, nomeadamente as suas intervenções na EXPO ‘98 e actual Parque das Nações, a sua concepção arquitectónica, que se reflecte com particular acuidade nos seus desenhos, resulta do discurso cultural estabelecido pelo autor do Plano, ou seja, carregado de intenções diversas, que sugerem objectos arquitectónicos sobre o embasamento, variados e passíveis de diferentes combinações como um “puzzle” ou “Lego” tanto ao nível da forma como das cores e ornamentos.

Trata-se de um registo “renovado” de uma Lisboa “antiga”, rica em formas e estilos (contrastes), telhados e cores numa miscelânea vibrante, resultante de diferentes épocas, civilizações e culturas importadas por viajantes, navegadores, imigrantes ou comerciantes desse mundo.

Foi neste sentido e em consequência dessa notável re-invenção urbana para a EXPO ‘98, que apelava à diversidade, variação de cores, etc, que propôs para o edifício Gil Eanes a referência simbólica da Bandeira de Portugal. Não o entenderam assim alguns responsáveis, que preferem continuar como guardiães de velhas fórmulas e receitas a enfrentarem o risco das inovações, pelo que, a pedido, acabou por ir à lixívia, acabando por aparecer, no final, pintado de branco. Paciência. Ficaram o Plano de Pormenor, o PP3, que contempla uma área significativa, e o edifício das Casas do Tejo, que, como já foi referido, se trata de facto de um “cadáver esquisito”, à maneira dos surrealistas, metade edifício em Terra, metade navio fantástico encalhado na Expo’98, para de algum modo minorar as suas ânsias de infinito de “arquitecto arrependido que queria ser marinheiro”.É um edifício que surpreende com os seus aspectos variados e inesperados, sobressaindo uma “quilha” de rotura entre duas atitudes distintas “o Mar” e os “Barcos em terra”, da qual resulta uma síntese de informalidade e intimidade, e cuja poética se traduz numa arquitectura simbólica inspirada nos Descobrimentos, na mensagem Bíblica e Cristã do Ocidente e na aventura por terras de além-mar (Manuelino, Fortes e Fortalezas do Antigo Império, o Mar e a Terra, o Sol e a Lua, o Branco e Preto do Templo, luz e trevas, o Dia e a Noite), elementos que têm muito a ver com com o que Teixeira de Pascoais designava de Lusitude, termo que é muito caro a Troufa Real, e que de alguma forma concretizou no projecto que apresentou no concurso para o Centro Cultural de Belém, que imaginou como uma grande esfera armilar, símbolo de D. Manuel I.

Entre uma certa perversão, concretizada pela primeira vez em Luanda, numa delegação do Banco Pinto & Sotto Mayor, com evidente sentido erótico, na esteira do erotismo de Georges Bataille e das suas transgressões – autor, na altura, editado em Portugal pelo António Alçada Baptista, na Moraes Editora – e prosseguida com as suas casas eróticas, nomeadamente em Portugal e Açores, e uma indelével expressão irónica que se vai tornando a sua tónica, Troufa Real não perde ocasião para empregar a simbologia “sagrada”, pelo que aproveita sempre todas as oportunidades para utilizar portais e varandas triangulares, que fazem lembrar os mobiliários do templo, entre outros numerosos detalhes que só um iniciado perceberá, mas que são, antes de mais, uma contínua homenagem a um mestre, Cassiano Branco, cujo nome simbólico é Vitrúvio, como é o caso, por exemplo, da casa de Mário Cabrita Gil, em Alfama.

Razão porque, nessa mesma medida, tal como o mestre, compreende a arquitectura como uma arte partilhada com as técnicas, as ciências sociais e humanas, com todas as artes. A pintura e a escultura, especialmente, não se afastam do resto. “Há na arquitectura um grande compromisso com a cultura, a estética, a filosofia e as humanidades”, fez sempre questão em frisar.

Anote-se, a propósito, que esse sentido de partilha já o tinha levado a solicitar a colaboração de Carlos Fernandes, um surrealista pop marcado por um vincado sensualismo tropical, logo na primeira fase da sua estada em Luanda, cidade onde frequentou a tertúlia da esplanada do Zero, na Avenida Marginal, compartilhando também convívio e solidariedade com jornalistas como o João Fernandes, o José Manuel da Nóbrega e eu próprio, fotógrafos como o Fernandes Chaves, artistas plásticos, como o referido pintor Carlos Fernandes, intelectuais como o Aníbal Fernandes, e poetas como o Herberto Helder, quando da sua passagem de três anos  pelo “Notícia”, que foi uma das experiências mais exuberantes do jornalismo português. Acrescente-se ainda que foi dessas ideias partilhadas com muita ironia e muito mais entusiasmo que nasceu a ideia do Salão de Arte Moderna de Luanda, que foi a primeira grande oportunidade que Luanda teve de usufruir dos primeiros sinais da modernidade nascente.

Resta assinalar que todos os desenhos de Troufa Real se referem a projectos seus, de que são a sua génese ou variações com vista a criar e encontrar novas soluções.

 

Rodrigues Vaz
Jornalista