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Jan 10

O Navegador solitário de Benfica ao Camões, 1988

Convite para uma viagem alternativa ao centro da cidade de Lisboa em dias de traba­lho (em crise de transportes) sem confusões, enervações e cheia de assombrações. É assim:
Sair de casa cedo de preferência, sozinho e ainda às escuras, para não baralhar muito as ideias com os prédios que nos rodeiam lá do bairro que como se sabe é preocupante… esquecer o percurso normal das pessoas que é logicamente atraves­sar a cidade pelo seu interior, mas sim contorná-la, indo pela periferia do lado poente, passando pela Buraca, Alfragide, Restelo, zona ribeirinha até ao Cais Sodré, para então isso sim, subir até ao Camões. E de facto um passeio no tempo, rápido, que nos transporta para além das rotinas do quotidiano. E uma aventura espantosa. Começa-se por passar junto ao Bairro da Cova da Moura que se identifica facilmente pelo seu castelo, com ameias e tudo (que é uma igreja) sobre um casario informal, de bairro popular que não me atrevo a chamar clandestino porque na realidade pertence a outras histórias. Aí vive uma curiosa comunidade de gentes vindas do antigo Império de todas as cores e feitios (angolanos, cabo verdianos, guineen­ses, portugueses etc).
Bairro que surge vertiginosamente a seguir às independências e onde vivem famílias de todas as origens, algumas muito importantes e de todas as oposições onde encontramos pais de ministros e de embaixadores das mais variadas nações. E um caso singular, que vale a pena conhecer.
Depois, passa-se por Alfragide onde ainda se podem ver as Torres de Habitação que nos princípios de 70 fizeram sucesso (projecto do arquitecto Conceição Silva) e uma escultura metálica de Fernando Conduto. Se se estiver atento encontram-se pelo caminho velhos respiradores do aqueduto das águas livres.
Até à Av. das Descobertas sente-se um pouco o parque de Monsanto, preocupação perdida de Duarte Pacheco… A passagem pelo bairro do Restelo vêem-se curiosas moradias ao sabor do Estado Novo hoje ironicamente carregadas de bandeiras de novas nações, que pertenceram a figuras proeminentes daqueles que lutaram até ao fim pela defesa do grande Império do Minho a Timor.
Na descida, a Torre de Belém, que é sempre coisa boa de se ver, recorda outras tantas histórias de encantar. Por razões de trânsito somos obrigados a passar para o outro lado da linha férrea, o que é óptimo, pois obriga–nos a percorrer toda a zona ribeirinha que àquela hora da manhã oferece uma espectacular aurora com a ponte sobre o Tejo em contra-luz Dias há que o cenário é holiodesco. Neste percurso as cenas clássicas da Lisboa Monumental, rica em referências históricas: O mosteiro dos Jerónimos, os pavilhões da exposição do Mundo Português de 1940 cujos restos continuam a animar o sítio e a prestar um serviço cultural e lúdico à cidade. Recorda-se Cotinelli Telmo, António Lino, Leopoldo de Almeida, o recanto do maquetista Ticiano Violante e do velho Espinho.
O pavilhão de artesanato montado por Tomás de Melo que nos faz recordar outros tantos como Fred Kradoffer e o então jovem pintor Frederico George, mais conhecido como autor do planetário e Museu da Marinha. Aqui ainda sobrevive o atelier do mestre Lagoa Henriques.
A FIL de Keil do Amaral e Alberto Cruz (1957), as gares marítimas de Alcântara e da Rocha Conde de Óbidos da traça de Pardal Monteiro um dos monstros sagrados da arquitectura pública do Estado Novo e que notabili­zou Almada com os célebres frescos da Nau Catrineta.
Lá para Santos, encontra-se o Museu das Janelas Verdes do arquitecto Rebelo de Andrade e o modernista Cinearte de Raul Rodrigues Lima (1936) onde outro jovem arquitecto Fernando Silva colaborou. No Cais do Sodré o genial mercado da Ribeira, projecto atribuído a João Piloto bem perto da estação do Cais do Sodré (1928) também de Pardal Monteiro. Nos jardins podemos evocar a obra do escultor Francisco dos Santos junto da estátua O Homem do Leme.
Finalmente o encontro com a obra de Pombal subindo a Rua do Alecrim até ao Camões e Chiado, território sagrado e culto de Lisboa onde podemos ficar com o «Tesouro Velho e Tesouro Novo» que António Valdemar neste mesmo Boletim nos levou a descobrir.
Antes de terminar importa referir três casos importantes para o polémico discurso sobre a intervenção e transfor­mação das zonas históricas, no caso concreto dos edifícios «Pombalinos».
A Casa da Imprensa na Rua da Horta Seca ao Camões, do mestre Carlos Ramos, ao estilo do mais curioso Modernismo — «Português Suave», com cor de rosa e tudo. A livraria do Diário de Notícias numa das esquinas do Chiado (do arquitecto Conceição Silva 1955) com painel de Roberto de Araújo, e o edifício n.” 15 da R. Serpa Pinto junto ao Largo do Teatro S. Carlos, um dós primeiros projectos,, senão o primeiro do Arquitecto Formozinho Sanches (1947) construído no sítio do famoso salão Bobone das grandes exposições e ponto de encontro da fina flor da época, curiosa reinterpretação dos traçados de Carlos Mardel.
Esta viagem longa é certo, leva contudo menos tempo de que se pode imaginar e torna-se divertida. Faço-a todos os dias há longos anos. Tenho a oportunidade através dela de encontrar a coragem e o estímulo necessários para estar vivo nas manhãs do convento de S. Francisco e nas tardes no palácio do marquês de Santa Iria debaixo do Templo da Nossa Senhora dos Revolveres de Amâncio Guedes.

 

 Troufa Real Prof Arquitecto

Publicaçãp Trimestral do Centro Nacional de Cultura
Abril/Maio/Junho 1988