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Dez 22

Construtor de Mundos

A arquitectura e a agricultura são as duas actividades humanas que de forma mais persistente e consciente alteram o meio ambiente. Derivam da mesma vontade de desnaturalizar o espaço, ainda que de maneiras distintas mas interligadas. Foram, aliás, os excedentes originados pela agricultura que levaram à criação das primeiras cidades.

Desde então a recombinação do mundo natural nunca mais parou, ao ponto de se poder afirmar que hoje não existe, na face da terra, um só metro quadrado que não tenha sido já objecto de intervenção humana. Quer por alteração paisagística, modificação da fauna ou da flora, objecto de construção ou reconversão cultural. Convirá não esquecer que mesmo as reservas naturais são criações de projectistas que definem limites, condicionam ambientes, traçam circulações. Ou que os oceanos são atravessados por verdadeiras auto-estradas de navegação. E não encontramos já lugar, animal ou planta que não tenha um marco, uma coleira ou uma etiqueta qualquer.

Por isso não se justifica continuar a falar de dois mundos separados. O natural e o artificial. O campo e a urbe. A natureza e a casa. O mundo é único e todo ele obra da acção humana. O planeta é uma enorme urbanização.

Nesta perspectiva, o conceito de arquitectura como disciplina dedicada à construção da casa, simples técnica profissional, ou mesmo, arte particular, não faz qualquer sentido.

A arquitectura é a incessante construção e reconstrução do mundo.

Esta brevíssima introdução serve para situar o meu olhar sobre a obra e a pessoa de Troufa Real. Pois não conheço em Portugal nenhum outro arquitecto que assuma tão conscientemente esse entendimento da arquitectura como construção de mundos. Não como tese, mas como vida e prática reconhecida. Por isso outros falarão do seu utopismo, do esoterismo e do tropicalismo, que aliás é uma forma particular de utopia. Da maçonaria. De África. Talvez também do Oriente e da sua paixão pelos barcos. Mas no essencial o conjunto dos interesses deste arquitecto, nos quais a criatividade é sempre central, derivam de uma vontade expressa de reconstruir o mundo português através de uma operação de refundação cultural. Com base em África, único sítio do planeta onde realmente se pode ainda encontrar verdadeira originalidade e singularidade. Mas uma África que nada deve a essa identidade nostálgica e pré-moderna de que se constróem as ilusões dos vários neocolonialismos ainda activos. Ao invés destes, Troufa Real não pretende ajudar os “atrasados” africanos, mas antes os “pobres” portugueses cada vez mais perdidos entre uma Europa que desconhecem e um destino que ainda não encontraram. Troufa Real propõe assim uma recombinação biocultural do tristonho homem português com a exuberância criativa e a alegria existencial da África negra. Ou seja, uma verdadeira manipulação genética, humana e cultural que nos permita sair do espesso e inoperativo cinzentismo em que nos encontramos.

É neste sentido que a sua obra se distingue da simples criação de um estilo ou seguimento das modas conjunturais. Troufa Real tem uma visão. Não só para o objecto arquitectónico, mas para toda a sociedade. Visão que atravessa todas as suas intervenções, das mais singelas, nos pequenos desenhos ou peças de design, aos grandes edifícios, planos de urbanização ou concepção de cidades inteiras. Visão que acredita na possibilidade de reaprender com os outros, em particular com os africanos, a alegria da vida, a festa das cores, a exuberância dos comportamentos.

Infelizmente não vivemos num tempo propício à audácia. Pelo contrário, a democracia portuguesa é habitada por homens de curta ambição. Que fazem política, mas não são capazes de a pensar. Que não arriscam um mínimo no que é inovador, mas investem tudo na mediocridade estabelecida. Por isso também, as cidades são tão sombrias.

Mesmo assim e apesar das dificuldades e incompreensões, Troufa Real vai produzindo uma obra marcante, povoada de sinais positivos e referências assumidas numa iconografia feliz e original. Portugal precisa.

                                                                                  

Leonel Moura
Artista plástico. Crítico